27 outubro 2014

Muro de Brasília

Não é difícil ouvir dos mais jovens que aulas de História não são tão importantes, já que tratam do passado e não de algo mais "prático". Essa ideia é mais difundida na parcela da população que tem a sorte (?) ou o mérito (???) de contar com um ensino de qualidade mínima (?????), onde é ensinada a produzir e trabalhar pelo país. Não coincidentemente, não é difícil ouvir de partidos e governantes que pregam o "prático" e a corrida insana em busca de um padrão de "vida" que beira a exploração - levando em consideração as dificuldades e sofrimento cotidianos, que não podem ser ignorados - o mesmo tipo de opinião sobre a História enquanto disciplina escolar. O grau de intensidade dessa opinião ainda é diretamente proporcional ao grau escolar no qual a disciplina é ministrada, chegando a ser discutida a real importância da existência da mesma enquanto curso superior - que, no geral, acaba por formar, exatamente, professores de História.

Eis que a
escassez de respeito a essa disciplina, bem como ao termo "disciplina" em todas as suas definições, se faz presente justamente no momento mais crítico de nossa História presente. Não mais que de repente, o país apaixonado por futebol - a ponto de tratar todas as disputas políticas, incluindo a corrida presidencial, com a mesma paixão e o mesmo furor - decide tirar como exemplo da Alemanha, que o derrotou em casa na semi-final da Copa do Mundo, algo totalmente contrário à própria evolução tão cobrada neste campo: uma divisão geopolítica com marcas profundas nas relações interpessoais, trazendo à tona um questionamento assustadoramente real sobre a separação/divisão do Brasil em dois "Brasis": um Norte e um Sul. Se a divisão percentual marcante de votos no segundo turno das eleições presidenciais é a causa-mor das declarações xenófobas se tornarem tão abertas e radicais, cujos autores nem sequer se incomodam com a alcunha clara de "preconceituosos" que tomam pra si, essa mesma divisão de votos é consequência também da influência de poderes diretamente ligados a essa corrida política

Os dois principais Arquitetos das respectivas candidaturas concorrentes no segundo turno fomentaram, cada qual ao seu estilo, esse mesmo discurso de oposição entre classes e regiões. Tão logo seus mestres mandaram, seguidores/torcedores desses partidos partiram para uma guerra verbal - e, não raramente, física - contra qualquer opinião diferente à de seu lado, mesmo que essa opinião não fosse, de fato, oposta. O único ponto "pacífico" entre os dois extremos é a suposta acusação de "voto de umbigo", ou seja, das pessoas votando em seus próprios interesses. Apesar da obviedade gritante da natureza democrática desse ato, esse mesmo ponto em comum é o maior argumento, dos dois lados, para que se inicie um processo separatista do maior país da América Latina, contraditoriamente famoso principalmente pela sua riqueza cultural, pela diversidade de povos e por ter elegido - democraticamente, pelo povo - a bancada mais conservadora dos últimos 50 anos de seu Congresso Nacional.

Meu texto, até aqui, acaba tendo um caráter meramente informativo, com o meu raio-X pessoal sobre todos os acontecimentos sendo traduzidos pela forma que escrevo, aliados à minha visão de mundo e minhas "crenças ideológicas". Seria leviano demais escrever obviedades e postular um título de "jornalista" - o qual não apeteço no momento. Mais do que isso, o que julgo essencial é o exercício de busca a uma solução de um problema proposto pelo texto. Principalmente de uma solução imediata a um problema imediato, que depende apenas de nós para ter um desfecho diferente. O que se vê, ao contrário, é uma tentativa de combater a xenofobia com uma pretensa auto-xenofobia - ora leviana, ora ingenuamente. Explico: paulistano dizendo que "todo paulistano é burro por votar em seu próprio umbigo e criticar o nordestino por ser burro e por votar em seu próprio umbigo. Criticar um povo por criticar outro povo é usar do mesmo crime que se quer combater. É a famosa armadilha na qual caem as "mulheres machistas" ou "negros racistas": a reprodução de um discurso de ódio do qual eles mesmos se defendem.

Entrando mais na questão política, sendo a favor ou não da democracia representativa, o erro está no alvo a ser mirado. Não é a pessoa que realmente necessita do Bolsa-Família que devemos criticar e combater, e sim a pessoa que tem dois carros na garagem e recebe Bolsa-Família para os dois filhos, e trabalha com um salário que o define como classe média mas não quer ser registrado na carteira pra ganhar esse benefício. Não é a pessoa que precisa do ProUni para realizar o sonho de ter um diploma - e eliminar um dos vários obstáculos sociais que enfrenta
quem usa indevidamente o imposto pago por quem trabalha e tem condições de trabalhar - qualquer que seja a região do país - e sim a pessoa que paga um condomínio altíssimo em um bairro nobre e faz Mackenzie de graça. Não é só a burguesia tucana paulistana que brada de forma xenófoba que deve ser apontada, mas também os paulistanos que votam no PT e são corruptos, se apropriando de benefícios que não foram feitos pra eles, buscando brechas na lei. Assim como os nordestinos que votam nos mesmos coronéis e nas mesmas famílias que criam seu eleitorado na base do medo, em troca de uma posição que mantenha seu próprio povo trabalhador sob esse mesmo medo. Assim como todo e qualquer brasileiro que se aproveita de qualquer situação e tira, assim, de quem precisa. Esse é o verdadeiro voto maléfico de umbigo, usando a tão amada democracia como trampolim para ser melhor que os outros, e não para que todos sejamos iguais.

Apesar desse legado extremamente negativo que essas eleições trouxeram para o Brasil, toda a energia criada e alimentada durante esse período pode ser canalizada para um bem maior: já que não existem mais amigos quando se discute política, também não devem existir mais convenções sociais que impeçam o combate a esses tipos de malefícios implantados na cultura do nosso povo. Sejam elas corrupções ou crimes de ódio e preconceito. Sejam elas causadas pelo seu melhor amigo ou por alguém da sua família.

Que os muros do preconceito e da intolerância sejam derrubados desde já! Que resgatemos nossa identidade heterogênea. Faça - e peça para a pessoa próxima a você, velha amiga ou "nova inimiga", fazer - sua própria árvore genealógica. Redescubra suas origens antes de maldizer este ou aquele povo, incluindo o seu. Cobre do Governo, tendo votado nele ou não - é seu direito, ao contrário do que as pessoas na sua rede social dão entender quando dizem "não quero ver ninguém reclamando de X, agora que o elegeram" -, que a distribuição de renda seja realmente igual e justa, aplicada na velocidade e maneira certas, sem criar ervas daninhas em suas urnas, qualquer que seja a região. Se você pensa que alguém não tem o mesmo nível intelectual/crítico que você, discuta com a pessoa, em um nível razoável pra os dois lados, e sempre respeitosamente, sobre o que está certo ou errado, ao invés de quem. Do contrário, o preconceito já está partindo de você. E você vai contribuir com mais um tijolo nesse muro.

Que os livros de História de hoje ganhem mais evidência e importância, e nos ensinem a não dividir um país novamente, 24 anos depois. Do contrário, caso ainda existam, os livros de História do futuro apenas discutirão se o Muro de Brasilia foi superfaturado e construído com mão de obra escrava. E não quem o construiu de fato.

(Em tempo: parabéns ao Estado de Minas Gerais que votou com consciência empírica e para o seu próprio bem, sem que isso caracterizasse egoísmo. E parabéns ao Rio de Janeiro pela maioria de votos NULOS, acima do número de votos que elegeram seu novo Governador, mostrando nas urnas o descontentamento das ruas em 2013. Ironicamente do Sudeste, que seus exemplos sejam copiados ou, melhor ainda, ensinados por vocês, sem que necessitem ser exportados.)

*Ouvindo: Cazuza - Brasil/Só Se For A Dois