02 outubro 2014

Epifania de um Vaso Sanitário de Hospital

Você já comemorou sua ida ao banheiro hoje?
Há quatro dias, senti uma das piores dores que eu senti nos meus 30 anos. Eu já sabia que aquela dor era fichinha perto de tantas outras dores que tantas outras pessoas sentem na vida. Ainda assim, era genuinamente insuportável pra mim.
Era apendicite. A famosa inflamação da famosa parte do corpo que só existe para inflamar.
Pouco tempo depois, enquanto tomava o choque de realidade de diversas formas diferentes, tomei conhecimento do que de fato causa a apendicite: não ser você mesmo*. Adaptei a interpretação: estava me permitindo ser algo bom, mas querendo me moldar a um ponto de "normalidade" que não me cabia. Nem por fora, nem por dentro. E me moldei. A ponto de me mudar, fisicamente, por dentro. Bem no meio de minhas entranhas.
Sempre soube ser uma pessoa privilegiada, sortuda e - não sei até onde essa palavra se aplica - abençoada. Por tudo o que eu tenho. Por tudo o que tenho condições de fazer. E sempre fui legitimamente grato, em todos os planos, de várias maneiras, inclusive tentando ao máximo expressar essa gratidão através de minha maior paixão: a música.
Ao máximo? Às vezes é o que achamos. Não é um comodismo mal-intencionado. Mas nenhum comodismo é positivo e benéfico. Sempre podemos mais! Sempre somos capazes de muito mais. Sempre, até onde nos é permitido.
"Todo minuto que passa é uma chance de mudar tudo à nossa volta". É a minha frase preferida do meu filme preferido (coincidentemente ou não, visto pela primeira vez há dez anos), e pensei estar sempre em sintonia a esse lema. A confirmação contrária veio de uma voz interior. Sufocada. E, por isso mesmo - ser interior e ser sufocada -, se fez presente gritando. Alta, clara, rasgada, inflamada e violentamente.
Não é por acaso que a cirurgia para retirar o órgão inflamado abre um buraco no umbigo, ou mexe com o tronco, a estrutura, as vísceras. Bem nas entranhas.
Tão bom reconfigurar certezas antigas - o prazer simultaneamente masoquista e indolor de aprender que podemos sempre estar errados -e reafirmar outras - o prazer simultaneamente não-egoísta e individual de perceber que aprendeu e acertou bastante também, principalmente quando fiz alguém sorrir. Foi o que vários deuses ensinaram, através de palavras, versos ou versículos, a várias outras pessoas. Por acaso, a mim o ensinamento veio de um vocalista inglês de "rock pauleira".
Hoje, sentado em um vaso sanitário, despido das vergonhas e termos chulos imputados pela sociedade e seu sistema linguístico a esse ato tão natural - bem como a tantos outros atos naturais - reconfigurei em mim mesmo as definições de duas palavras: controle e liberdade. Até que ponto somos livres? E até que ponto temos o controle de tudo o que acontece em nossas vidas? As respostas - com daquela obviedade que se faz necessária de tempos em tempo - são extremamente pessoais. Bem como certas obviedades individuais da vida. Como ir ao banheiro sozinho.
Hoje eu andei pela primeira vez pelos corredores do hospital.
Não vou aqui ficar descrevendo toda e cada ação que me foi privada.
Primeiro por não ser nada diferente do que já foi fantasticamente escrito por Rubens Paiva - quase xará - no primeiro livro que ELA me deu, ou do que já foi genialmente cantado por Josh Homme no álbum que também ELA me deu. Mais que isso, minha experiência foi muito mais tênue do que a dos anteriores. 
Segundo porque considero muito mais escandalosa a AUTO-privação de minhas ações naturais e básicas, de fazer o que acredito e amo, depois de 30 anos. 
Fui andando, vagarosamente, no ritmo que me foi permitido, por mim mesmo, por todos que cuidaram de mim, por Deus, Jah (que é diminutivo de Jeovah), Kardec, Buda, ou quem quer que esteja no comando (não seremos todos nós juntos?). Fui entrando em corredores novos, longos, e andei. Vi janelas que nunca havia visto. Vi quadros que não conhecia. Conheci um de Monet. Me alegrou ver aquele quadro, mesmo não entendendo nada de Monet - mesmo sendo a inspiração maior pro nome daquele filme preferido -, nem mesmo de Artes Plásticas. E quem foi que disse que devemos entender tudo?
Já não basta a incrível e bela ironia de todos os sinais estarem tão interligados o tempo todo? Não será essa uma lição já bem nítida?
A vida nos ensina o tempo todo. Seja você um bom aluno ou não. Gratidão não tem a ver com ser o melhor aluno. Tem a ver com ser feliz pela oportunidade de sempre ser aluno. Seja em sua vida pública ou privada. Não importa em qual carteira você esteja sentado.

Levante-se, de onde estiver. E agradeça.

(Escrito nos dias 29 e 30 de setembro, no Hospital Dom Antonio de Alvarenga. Minimamente organizado em 2 de outubro. Em casa.
Decidi mudar, apenas para esse texto, a estética do blog. Sem negritos, sem destaques, sem música. Experiências atípicas e importantes merecem tratamento especial.
*Fonte: http://lotusesoterismo.blogspot.com.br/2012/10/apendicite-pela-visao-da-metafisica.html)

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